quarta-feira, 1 de setembro de 2010

O museu comunitário é herético? ( Hugues de Varine)

Inquietações amplamente compartilhadas

Várias comunicações recentes recebidas de amigos e de correspondentes em vários países colocam questões relativas à dificuldade de fazer reconhecer os « novos museus », ecomuseus, museus comunitários, museus de território, pelas instâncias administrativas e pelos meios profissionais. Parece que a utilização do nome « museu » pelos promotores de projetos locais de desenvolvimento e de ação comunitária associando território, população, patrimônio, é contestada por várias razões , explícitas ou implícitas :

- o desrespeito aos princípios tradicionais da museologia ;

- particularmente, a menor atenção dada à coleção permanente, à pesquisa acadêmica e à conservação ;

- a modéstia e mesmo a pobreza técnica e científica das exposições e manifestações culturais organizadas pelo museu ;

- a ausência de qualificação profissional reconhecida dos responsáveis e dos colaboradores desses museus, que são freqüentemente autodidatas em museologia e museografia ;

- uma confusão com outras realidades ou conceitos , como os centros de interpretação, os parques naturais, os sítios históricos, certos lugares de interesse turístico e parques temáticos.



A ação levada há anos pelo MINOM ( Movimento Internacional da Nova Museologia) para defender, no seio do ICOM ( Conselho Internacional de Museus), a causa desses museus de um novo tipo( nem tão novo, pois remonta aos anos 60 !) não são aparentemente suficientes para ultrapassar as reticências da parte do que se pode chamar de « establishment » dos museus. A trilha recentemente aberta para definir as palavras-chaves do vocabulário da nova museologia, se é indispensável para a credibilidade internacional do movimento, ficará num nível intelectual superior e não responderá aos atores do terreno que se interessam menos à semântica e mais às suas relações cotidianas com as populações, as autoridades locais e os outros museus.

Um dos aspectos do problema é, sem dúvida, que estamos diante de duas categorias de pessoas bem distintas : de um lado, museólogos qualificados, confirmados, integrados nos sistemas técnico-administrativos organizados e conscientes de sua legitimidade ; de outro lado, pessoas que poderíamos chamar de militantes do patrimônio, enraizados em comunidades locais, sem qualificação formal adaptada , mas vivendo e trabalhando em simbiose com a população de seu território de pertencimento. Essas duas catregorias não falam a mesma linguagem, ainda que a matéria prima de referência, o patrimônio, seja fundamentalmente o mesmo. A utilização da palavra « museu » é legítima nos dois casos ? A palavra está realmente adaptada ao trabalho de nível comunitário, mesmo quando sua prática se afasta das trilhas construídas e quando a inovação saída da base leva a encurtar caminhos ou a questionar certezas ?

Em suma, estamos diante de uma doutrina ortodoxa de valor universal, levada por museólogos reconhecidos e certos de seu direito em conflito com as iniciativas heréticas, diversas, não controladas, desrespeitosas dos dogmas estabelecidos, promovidas por perigosos amadores associados a alguns profissionais marginais ( ou talvez subversivos) ? Parece que as tentativas de recuperação têm chegado , em certos países, a uma submissão dos novos museus ao modelo oficial : um artigo recente num jornal francês descrevia de modo exato a evolução dos ecomuseus e sua absorção progressiva numa corporação de « museus de sociedade » que acaba por fazê-los desaparecer numa massa confusa de pequenos museus de antropologia, de folclore, de patrimônio industrial, sem vínculo comunitário real. Aliás, os novos museus, comunitários ou territoriais, tentam se organizar em redes, como no México , e convencer as autoridades e o meio profissional de aceitá-los como são, como no Brasil.

Creio que é urgente lançar um novo debate, a partir de experiências acabadas ou em curso, num período de dez, vinte, trinta anos ou mais. Esse debate não deve ser teórico, mas colocar problemas concretos, vividos pelos atores locais e isto com palavras simples, facilmente compreensíveis em diferentes línguas.

O patrimônio

Todo museu é uma instituição do patrimônio, mas de qual patrimônio se trata ? Isso ninguém define a priori. Supõe-se que a noção de patrimônio esteja integrada por todos.Tentemos ir mais longe.

Para um museu tradicional e seu museólogo-conservador, o patrimônio é composto dos objetos que fazem ou farão parte da coleção do museu e , sem dúvida, também dos objetos que se encontram fora e cuja importância científica,artística ou cultural justifica que sejam considerados no programa museológico ou cultural, seja ele temático,disciplinar ou generalista. Pouco importa que um objeto tenha ou não un vínculo com a população atual do território onde se situa o museu. Na realidade, o patrimônio desse museu é definido pelo museólogo conservador de acordo com seu saber científico, seu gosto estético e seus interesses culturais, considerando-se naturalmente missões confiadas ao museu pelos parceiros exteriores( Estado, associação, mecenas,etc.). O valor e a raridade desse patrimônio justificam a missão de conservação que é atribuída ao museu, antes de qualquer outra missão de difusão ou de educação.

Para o museu comunitário ( ou ecomuseu ou ainda o museu territorial, na medida em que eles sejam realmente comunitários), trata-se do patrimônio reconhecido como tal pela comunidade e por seus membros. É o capital cultural coletivo da comunidade, ele é vivo, evolutivo, em permanente criação. Os responsáveis do museu utilizarão esse capital para atividades inscritas na dimensão cultural do desenvolvimento do território e da comunidade. A conservação é uma responsabilidade e uma tarefa coletiva da comunidade, os profissionais do museu sendo essencialmente apoio técnico e científico.

Vê-se bem por esses dois parágrafos , na verdade, simplificadores, que a definição do patrimônio é uma das fontes da incompreensão manifestada pelos museólogos oficiais com relação aos « amadores » dos museus comunitários. As palavras nâo têm o mesmo sentido e não inspiram as mesmas dinâmicas e as mesmas iniciativas/ abordagens. O fosso se aprofunda quando se passa da noção de patrimônio para a de coleção.

A coleção

Um testemunho pessoal : em maio de 1972, eu apresentava em Dijon, diante de participantes do seminário internacional organizado pelo ICOM para uma definição de ecomuseu ( termo criado no ano anterior durante a Conferência geral do ICOM), o anteprojetodo que viria a ser o Museu do Homem e da Indústria da Comunidade Urbana Le Creusot- Montceau ( chamado ecomuseu a partir de 1974). Eu exprimia então uma das hipóteses que formulávamos na época, no seio do pequeno grupo de promotores desse museu : em princípio, não desejávamos constituir coleções permanentes, pois pensávamos que o patrimônio do território e de seus habitantes constituiria o equivalente a uma coleção. Então, Jean Chatelain, diretor dos museus da França e vice- presidente do ICOM, reagiu de forma contundente : « não pode haver museu sem coleção ». No seu espírito de jurista, uma coleção de museu era necessariamente a propriedade inalienável do museu ou da coletividade que a tutelava. Para nós, tratava-se de uma espécie de propriedade moral da comunidade sobre seu patrimônio coletivo, o museu comunitário agindo como mediador pela valorização social, educativa, cultural, econômica dessa coleção-patrimônio.

Já, vários anos antes, quando John Kinard criou o Anacostia Neighborhood Museum, em Washington ( DC , USA ) , não procurou organizá-lo em torno de uma coleção. Ao contrário, privilegiou as exposições temáticas ligadas às preocupações essenciais da comunidade afro-americana do bairro de Anacostia.

Mesmo que muitos museus comunitários, ecomuseus ou outros acabaram por possuir coleções de objetos e documentos, ou ainda edifícios de interesse histórico, antropológico ou técnico, essa apropriação não foi nunca o objetivo primordial e eles a aceitaram como parte do processo, estando a aquisição ligada à necessidade, à oportunidade , à oferta de membros da comunidade. Mas, no museu comunitário, o objeto, o local, o monumento, o documento devem tanto quanto possível ter vida própria , o que significa implicitamente que sua entrada numa coleção no sentido da museologia oficial acaba por fazê-los morrer, fazendo-os congelar para sempre, subtraídos dos riscos da vida. Se nós pensarmos, por analogia, no domínio das ciências da vida, que se chamavam outrora as ciências « naturais », estamos aqui numa relação dialética entre a vontade de preservar a biodiversidade, portanto, a vida das próprias espécies, e o desejo de entronizar os últimos espécimes dessas espécies nas coleções ditas « naturalizadas ». A primeira iniciativa é política, a segunda é científica.

Essa questão da coleção é então um primeiro campo de conflito entre museólogos e ecomuseólogos. Ela é, sem dúvida, de modo mais ou menos inconsciente, o primeiro obstáculo à integração do museu comunitário no seio da corporação museal. O museu normal, qualquer que seja sua definição, é feito com as coisas, o museu comunitário é feito com as pessoas. O patrimônio comunitário é o patrimônio do pai de família, nâo é o tesouro de Harpagon.

O território e a comunidade

Outra questão delicada : o museu oficial só é responsável pela sua coleção e seu público. Mesmo se a coleção é mais ou menos representativa de um dado território, no caso de um museu de sítio, departamental ou de parque natural, o essencial da atividade museal está centrada nas coleções. Quanto aos públicos, pouco importa que venham do território ambiente ( escolares, por exemplo ), são apenas públicos, portanto, consumidores e de forma alguma constituem uma população, um conjunto de atores, partes integrantes do museu sob todos seus aspectos.

Uma prova : a exposição, seja permanente ou temporária, fala a linguagem do museólogo, também chamado conservador e não a linguagem da população.Será preciso , no melhor caso, engajar um tradutor, nomeado mediador, para decifrar a linguagem de um aos outros. O trabalho do museu se passa, na sua maior parte , nos bastidores , entre profissionais e técnicos, só o produto final ( a exposição) sendo apresentado ao público.

O museu comunitário, ou o ecomuseu, ou o museu de território procede de outra forma : poara ser representativo, sem entretanto repousar sobre uma coleção, ele deve emanar do território e de sua população. Seu trabalho se faz em pleno dia, associando a cada instante tal e tal elemento do patrimônio, tal e tal habitante ou grupo de habitantes : é o que chamo de processo ecomuseal , que é essencialmente cooperativo. A composição do público das exposições importa pouco, pois a atividade pública do museu corresponde à totalidade e à globalidade do seu processo. Poderá haver púnlicos identificáveis, grupos escolares ou turistas por exemplo, mas eles serão apenas um produto derivado da atividade principal, pois tal museu não tem visitantes , mas habitantes.

Esta outra dimensão fundamental da função ecomuseal quase não pode ser compreendida pelos museólogos de tradição : nós não estamos no mesmo espaço-tempo nem na mesma lógica sócio-política. De uma parte, o museu comunitário trabalha para o presente e para o futuro de um território e de uma comunidade a partir de seu próprio patrimônio, enquanto o museu clássico preserva e valoriza « bens » culturais e naturais, únicos ou típicos, reconhecidos como importantes por razões científicas. De outra parte, o objetivo do primeiro é o desenvolvimento sustentável da comunidade e do território ; o do segundo é o desenvolvimento do conhecimento e uma comunicação cultural global.

É preciso então recusar de chamar museu o projeto que trabalhamos ? Afinal, o fundo patrimonial é o mesmo, trata-se bem de mostrar, educar, valorizar. O interesse geral é mais nítido no museu comunitário, mesmo se a estrutura institucional é mais frágil e menos organizada. A leitura que fazemos da definição do ICOM me parece inteiramente aceitável em lingüística, ainda que substituamos público por população. Mas todos os museus tradicionais não afirmam procurar atrair novos públicos : seu objetivo seria, no entanto, atingido, se eles servissem efetivamente de maneira privilegiada 100% da população do território que os cerca.

O pessoal

É indispensável deter um diploma superior em museologia para criar,animar, dirigir um museu ? Sim, sem dúvida, para os museus tradicionais, sobretudo quando os regulamentos nacionais ou locais o impõem. Assinale-se, porém, que a instituição museal nasceu bem antes da disciplina especializada chamada museologia e também que , ainda atualmente, o que G H Rivière chamava a disciplina de base predomina frequentemente no curriculum vitae de um responsável de museu. Mas esses museólogos altamente qualificados, com algumas exceções, se consagram profissionalmente a perenizar fórmulas institucionais estabelecidas, excluindo toda inovação que poderia fazer a instituição sair da norma e fazer correr riscos seu diretor.

É divertido constatar que as pessoas que mais fizeram evoluir a idéia de museu há quarenta anos, até fazer nascer o movimento da nova museologia, pertencem ou pertenceram a profissões muito variadas, porém muito raramente à profissão museal. Georges Henri Rivière era um músico que se tornou etnólogo autodidata ; o Museu Nacional de Niamey foi fundado nos anos 60 por um desenhista de arqueologia, Pablo Toucet ; o Neighborhood Museum de Anacostia é obra de um pastor, John Kinard ; o primeiro diretor do Ecomuseu do Creusot- Montceau era um colecionador de arte moderna, Marcel Évrard, assistido por um médico radiologista hospitalar, Joseph Lyonnet ; o do ecomuseu municipal de Seixal (Portugal) era professor, Antonio Nabais, assim como Odalice Priosti, uma das dinamizadoras e inspiradoras do ecomuseu de Santa Cruz ( Brasil).

Poderia multiplicar os exemplos, ainda que haja também personalidades excepcionais do mundo dos museus que inovaram como Mario Vasquez ( México), Jon Gjestrum (Noruega), Lourdes Horta (Brasil) ou V.H. Bedekar (India). Notemos também a influência de universitários que sustentaram o movimento da ecomuseologia, às vezes se comprometendo mesmo nele diretamente como Pierre Mayrand (Canada), Per-Uno Agren (Suécia) ou Maurizio Maggi (Italia).

Menciono aqui apenas alguns nomes, como exemplos da diversidade de origens profissionais e de pertencimentos geográficos. Todos têm ou tiveram qualificações elevadas nos seus domínios de origem. Mas é preciso, para ser justo, descrever as equipes que tornaram possíveis essas inovações ecomuseológicas : compostas de pessoas frequentemente menos diplomadas e que se formaram, elas sim, no mutirão. Frequentemente voluntárias, às vezes engajadas sob estatutos precários e pouco valorizados, foram levadas a adquirir uma formação técnica e científica no decorrer do processo ecomuseológico no qual eram atores. Nos anos 80, Maude Céré ( Canadá) dava aulas de museologia popular nas aldeias de Québec. O ecomuseu do Creusot- Montceau fez seus técnicos seguirem cursos universitários que os levaram no mínimo ao mestrado. E naturalmente os voluntários foram obrigados a participar de estágios e seminários de qualificação profissional, por exemplo , para aprenderem a guiar os visitantes ou grupos escolares.

Confrontada a tal "perigo", a corporação de museólogos universitários e institucionais se mobiliza para preservar seus interesses materiais e morais e os departamentos universitários de museologia reivindicam o monopólio da qualificação profissional ( exceto na França onde esta pertence à Escola do Patrimônio). Essas reivindicações protecionistas, às vezes apoiadas sobre regulamentações oficiais, nacionais e locais, pretendem se impor igualmente ao que é inovador em museologia, mas também aos setores como a mediação cultural no sentido mais forte e mais exigente. E essa atitude é ainda mais fortemente expressa, no caso dos voluntários, que são considerados apenas amadores. No caso dos museus oficiais, são habitualmente confinados nos cargos das associações de Amigos, ou aceitos como mecenas, uma outra forma de público privilegiado.

De qualquer maneira, atualmente, não creio que exista no mundo uma só formação universitária dedicada à museologia comunitária, permitindo a membros das comunidades locais de adquirir um reconhecimento oficial de sua qualificação. Os museus comunitários mexicanos lançaram há quatro anos seminários profissionais para as Américas. Numerosos promotores de ecomuseus são obrigados a cursar museologia clássica para obter um diploma que lhes daria uma legitimidade no meio profissional. Um número crescente de formações universitárias, reconhecendo a vertente portadora da nova museologia, introduzem seqü^encias ou intervenções sobre esse assunto, para uma boa informação dos estudantes ; existe mesmo uma formação em « museologia social » em Lisboa.

Mas isso não basta. Com efeito, é necessário criar um programa de formação completo, adaptado, falando a linguagem das comunidades e não apenas a dos universitários. Tem-se necessidade de uma museologia popular, que possa dar conta não apenas dos museus identificados como tais, mas também e talvez sobretudo o conjunto de processos saídos da museologia comunitária, e indo até o desenvolvimento local , à educação popular. A formação teria por objeto a capacitação, um neologismo inspirado do espanhol e do português, diferente da qualificação que faz referência aos diplomas universitários e /ou profissionais que se dirigem a futuros museólogos clássicos.

Essa capacitação poderia seguir os seguintes princípios :

- a formação teórica e técnica seria reservada a pessoas que já possuem uma experiência de museografia local aplicada, qualquer que seja sua formação anterior ;

- a formação seria dada alternadamente , ancorada na prática do terreno como parte integrante do curso , cuja aquisição profissional seja avaliada , valorizada e validadas no curso ;

- compreenderia períodos de estágio em outros sítios para estender a experiência e compreender o caráter único de cada projeto, assim como para encorajar a formação de redes de solidariedade e de trocas ;

- Haveria uma hierarquia de diplomas ( para os franceses, certificats) , para incitar e permitir uma promoção profissional( de simples auxiliar voluntário a diretor de uma estrutura comunitária) e eventualmente uma especialização técnica ( conservação, inventário, mediação etc) ao longo da vida ;

- O conteúdo do programa de formação seria adaptado ao perfil médio das pessoas a formar, por exemplo : voluntários, profissionais empregados em tempo integral numa outra posição ( professor...) , experiências profissionais anteriores etc ; é preciso com efeito ter em conta as aquisições formais ou informais bem como a disponibilidade e os ritmos da aprendizagem próprias a essas diferentes categorias ;

- A formação abordaria as matérias próprias da museologia- museografia, domínios complementares obrigatórios : ação comunitária, pedagogia, desenvolvimento local, ecologia natural e humana, sociologia, psicologia... ;

- O equivalente de um trabalho de memória indispensável à validação de cada nível de formação deveria ser a formulação, a discussão e a realização de um projeto concreto novo ( uma exposição, um trabalho de inventário, un museu, uma antena, uma ação comunitária pretexto etc.), mas sobretudo não um trabalho clássico universitário ;

Cada pessoa formada se beneficiaria de um tutor, mais antigo em experiêncoia e em vontade para essa responsabilidade ( noção de solidariedade profissional) .

Esse programa de formação deveria ser levado ou ao menos acompanhado, pelo departamento de extensão ou de educação de adultos de uma grande universidade federal que daria a legitimidade indispensável à certificação final.

A exposição

As práticas contemporâneas dos museus tradicionais são cada vez mais sofisticadas Apela-se para as técnicas « modernas » , após o audio-visual, a multimídia e agora a informática , o que afasta cada vez mais o visitante do objeto e da realidade, para colocá-lo na situação de espectador de um produto mais ou menos virtual que se inspira em programas ou jogos informáticos. Tudo isso custa cada vez mais caro e coloca o museu na dependência de seus financiadores, Estado, coletividades locais, mecenas . Além disso, chega-se a um tipo de concorrência entre grandes museus, que procuram atrair os turistas pelos temas espetaculares de exposições temporárias ou pelo gigantismo das exposições permanentes. E quem terá o maior museu , em número de obras , em metros quadrados abertos ao público.

Os museus comunitários não têm os meios nem, sobretudo, o desejo de recorrer a esses métodos que parecem manipular o público. Eles se dirigem às mesmas pessoas que os criaram e que supervisionaram a sua instalação. É preciso então fazer a exposição voltar à simplicidade de suas origens : o objeto fala, ou questiona , ou intriga, é portador de uma massa de informações que cada um descreverá à sua moda, com ou sem a ajuda de um mediador. Talvez seja mesmo preciso, na linha certa dos princípios do trabalho comunitário, questionar o conceito de exposição, como o discurso de objetos colocados numa certa ordem e num espaço arranjado para esse fim. Quando o patrimônio do museu comunitário é repartido sobre todo o território e até nas casas dos habitantes ou nos lugares de produção, não é sempre possível nem desejável retirar os elementos de seu lugar para recolocá-los num ambiente estéril que se chamaria de sala de exposição. Já se reconheceram frequentemente os itinerários de observação, com ou sem instrumentos de interpretação como exposições a céu aberto ; é o mesmo para a visita de espaços de atividades sociais ou econômicas saídas do patrimônio reconhecido como tal pela comunidade. Alguns pensam mesmo que as manifestações públicas do tipo vigílias ou desfiles podem ter um caráter museográfico, evidentemente em função de suas motivações e da qualidade de sua realização : os membros da comunidade são aí autores-atores- espectadores e a ação por si mesma entra no registro do patrimônio imaterial.

Isso significa o reconhecimento da existência de uma verdadeira museografia do território, onde a comunidade e seus membros representam ao mesmo tempo o papel de atores e o de espectadores. Os museógrafos, no sentido habitual do termo, os cenógrafos, os cientistas não têm aí senão um lugar secundário, como assistentes da realização. É evidentemente difícil admitir isso aos profissionais qualificados dos museus, conscientes de sua missão civilizadora. E isso necessita de uma reflexão aprofundada de todos os parceiros e atores dos museus comunitários, principalmente sobre a natureza do objeto ou da coisa real, como dizia Duncan Cameron desde 1970. Estamos bem longe da noção de coleção, de exposição de objetos possuídos ou emprestados, em função de uma pesquisa feita por especialistas. Seria isto também uma heresia ?

A organização

O museu « normal » é uma instituição que nasce de uma decisão político-administrativa e que existe desde o dia de sua inauguração. Sua gestação se faz no segredo dos trabalhos científicos e técnicos, dos projetos de campanhas de comunicação, dos orçamentos plurianuais, dos procedimentos de recrutamento etc

O novo museu e mais ainda o museu comunitário na sua forma mais inovadora, não segue um procedimento, mas, como já se viu, ele é um processo. Seu objetivo não é a instituição nem uma inauguração ; ele é a co- construção , na comunidade e sobre seu território pelos membros da comunidade e as pessoas mais ou menos qualificadas que os ajudam, de um instrumento de desenvolvimento a partir de um patrimônio global identificado por seus detentores.

Isso significa que não existe modelo organizacional proprio do novo museu.Seus promotores devem, acada desafio, inventar estatutos e modos de funcionamento, de recrutamento , de financiamento, tendo em conta as condições locais, pessoas disponíveis ( ou a hostilidade de outras...) Os administradores chevronnés( encabestrados ) não podem compreendê-lo ou bem, se eles aceitam uma inovação, eles a aplicarão sem discernimento. Assim, nos primeiros anos do ecomuseu Le Creusot- Montceau, num movimento de utopia e de tomada de consciência das circunstâncias locais, tínhamos inventado um estatuto associativo muito complexo e mesmo complicado, que se apoiava sobre três colegas igualmente representados no conselho de administração : os usuários ( os membros da comunidade), os técnicos e cientistas, os gestores( ou financiadores). Esse sistema, idealmente equilibrado, nunca funcionou verdadeiramente, pois era muito pesado para funcionar e concluía com um grande número de reuniões sem resultados verdadeiros. Ora, no momento em que ele abandonara de fato o ecomuseu, a Direção dos Museus de França ditava a norma para todos os ecomuseus existentes e aos que estão por vir.

É indispensável prever , nos regulamentos públicos, como nos ensinamentos universitários e nos de museologia comunitária, um setor não normatizado, aberto à inovação institucional, permitindo uma evolução flexível das estruturas, ao sabor da vida natural do processo de gestação e de desenvolvimento do museu. O próprio nome do projeto deve poder ser mudado, prestes a abandonar o qualificativo de museu , se este não é compreendido ou não é mais conveniente e se a nova denominação convém mais à população. Isso vai certamente ao encontro das tradições administrativas e profissionais, onde o estatuto e o nome , portanto a forma, podem parecer mais importantes que o conteúdo. Mas é um bom exemplo da necessidade de uma museologia comunitária e popular, liberta ao menos de uma parte dos embaraços/ dificuldades herdados do mundo museal institucional.

A organização do museu comunitário deve de qualquer maneira repousar sobre métodos de gestão completamente diferentes dos dos museus oficiais. Esses últimos recebem meios financeiros mais ou menos satisfatórios da parte dos poderes públicos, obtêm complementos dos recursos de mecenas, sponsors, amigos, produzem suas próprias receitas por atividades comerciais cada vez mais desenvolvidas ( especialmente direitos de entrada, publicações,restauração, butique, manifestações de apoio). Os museus comunitários, por seu caráter de processo, devem nascer e sobreviver dos recursos da comunidade, essencialmente não-monetários.

Só atividades pontuais poderão ser financiadas por créditos públicos, a serem negociados amargamente. A independência do museu e seu caráter comunitário custam esse preço. Isso significa uma museografia pobre, participativa, eventual, que não pode repousar sobre numerosas pessoas assalariadas e altamente qualificadas, o que evidentemente é pouco compatível com uma museologia oficial cada vez mais luxuosa, consumidora de técnicas sempre muito mais exigentes.

O museu comunitário, ato político

E chegamos finalmente ao que é mais repreensível no museu comunitário, aos olhos do mundo dos museólogos profissionais : ele mostra convicto e sem complexos sua vocação política, pois quer ser um instrumento de desenvolvimento do território e da participação da comunidade e de seu patrimônio nesse desenvolvimento.

Odalice Priosti apresentou à mesa de discussões da nova museologia( durante o III Encontro de Ecomuseus e Museus Comunitários , no Rio de Janeiro, em setembro de 2004) o conceito de museologia da libertação, por extensão dos princípios da teologia latinoamericana da libertação por um lado e por referência à educação como prática da liberdade ( Paulo Freire). Nessa abordagem, claramente política no sentido mais nobre da palavra, trata-se de utilizar o museu e a educação patrimonial para conscientizar os membros das comunidades, torná-los capazes de autonomia e de iniciativa, prepará-los para uma participação dinâmica no desenvolvimento de seu território e em geral na vida pública.

Estamos aí muito longe da vocação essencialmente científica e cultural, políticamente neutra, dos museus tradicionais, grandes ou pequenos, que gerenciam suas coleções em prol de seus conservadores e de seus públicos, de uma maneira totalmente desconectada do contexto social e econômico que os envolve. A lembrança mais forte que conservei de minha passagem no ICOM foi o dia do Seminário de Santiago do Chile em maio de 1972, onde Jorge Henry Hardoy, especialista argentino da história da urbanização na América Latina, revelou a doze diretores dos maiores museus desse continente a realidade social e humana das metrópoles nas quais esses museus se situavam. O choque foi tanto sobre os museólogos que eles criaram no seu campo o conceito de « museu integral » que foi uma das palavras fundadoras da nova museologia. Entretanto, vinte anos mais tarde num outro seminário da UNESCO , em Caracas, constatou-se que as recomendações de Santiago continuavam letra morta, com exceção de algumas tentativas no México, como a da Casa del Museo.

São atualmente os museus comunitários, ecomuseus e outros museus de território que retomam, aprofundam e aplicam os princípios formulados em Santiago, à margem do sistema museológico oficial. Certamente, isso os leva a correr riscos , o do compromisso militante sobre os temas de natureza política, o de tomadas de posição sobre as apostas da sociedade, o de revelar patrimônios desconhecidos ou ameaçados, enfim o de parecerem « heréticos ». Mas esse é o preço a pagar para avançar na via do reconhecimento do patrimônio como recurso fundamental do desenvolvimento local.

Conclusão

Tudo o que foi dito pode parecer um exagero a alguns, ou radical, mas creio que reflete o sentimento de numerosos militantes da nova museologia que trabalham em projetos sobre esse campo, no contato com comunidades e territórios. Isso pode traduzir também a perplexidade de estudantes de museologia ou de patrimônio que têm dificuldade de se encontrar nos debates frequentemente confusos, onde as palavras pronunciadas por cada um não têm o mesmo sentido para os que as pronunciam e ainda têm outros significados para os que as ouvem. Creio realmente que a trajetória atual da nova museologia ( no sentido de museologia enraizada nas comunidades) diverge fortemente da museologia oficial.

É preciso então condenar o uso da palavra museu de um lado e de outro. Isso seria uma tentativa burocrática. Deixemos evoluir o termo, cujos avatares sucessivos, de toda maneira, têm pouco a ver com o Mouseion de Alexandria e admitamos que ele possa ter formas diferentes, em função de objetivos igualmente diferentes.

Porém, prossigamos o debate entre pessoas de boa vontade e continuemos a observar o que se passa nas comunidades e a tirar disso os ensinamentos.

(trad.OMP- março/2005)

Nenhum comentário:

Postar um comentário