quarta-feira, 1 de setembro de 2010

O lugar da comunidade no museu: Uma troca de serviços (Hugues de Varine/2007)

Apresentei essa intervenção no Congresso anual das associações de museus italianos, organizado pelo Comitê Italiano do ICOM, em Verona. O tema desse congresso era "Profissionais e voluntários nos museus italianos". Pareceu-me interessante ampliar a noção de voluntariado em diferentes maneiras de participar da vida do museu, além da noção tradicional de « amigos dos museus » .

O museu, como instituição cultural, está situado num dado território (uma cidade, uma aldeia, um quarteirão), no seio de uma comunidade humana complexa. Ainda que o museu não seja a única expressão cultural desse único território, ele faz parte de seu equipamento cultural e representa necessariamente um papel nas dimensões cultural, social e econômica de seu desenvolvimento.

Portanto, é indispensável, qualquer que seja a natureza, os objetivos e as missões do museu, se preocupar com o lugar que a comunidade, quer dizer, o conjunto de cidadãos tomados individual e coletivamente, ocupa no museu.


Proponho considerar três modos de participação dos cidadãos na vida do museu estabelecido em seu território e pesquisar em cada um como uma troca pode ser feita para que a instituição museu, seus profissionais e seus cidadãos voluntários encontrem benefícios numa cooperação.


Naturalmente seria preciso estudar mais detalhadamente as diferentes categorias de museus e de territórios, mas cada um adaptará ao seu caso específico.

1. A prática mais comum é a da visita desejada, escolhida pelos habitantes do próprio território onde se situa o museu (não falo aqui de públicos cativos, grupos escolares ou da terceira idade e naturalmente ainda menos dos visitantes de fora, turistas). Esses visitantes individuais locais são o que os anglo-saxões chamam de « patrões », cuja iniciativa é mais marcada e pessoal que a que chamamos de « grande público ». Eles vêm buscar um conhecimento ou um prazer mais próximo deles.

Em troca, uma tal prova de interesse da parte da população local pode encorajar museólogos e autoridades locais a dar mais importância à maneira como esses visitantes reagem à exposição, às atividades de animação etc. Pesquisas de satisfação, a constituição de perfis da população - alvo, devidamente consultada –( suas reações, opiniões e sua maneira de ver sobre um ou mais temas,políticos, comerciais ou culturais), antes e depois das exposições temporárias, a criação de atividades específicas ou assinaturas ou vantagens /descontos –(cartões permitindo várias entradas ou gratuidade durante todo a ano para visitantes habituais) fazem parte de uma boa política de cooperação com o público local. Esses visitantes particularmente motivados são também mediadores úteis de comunicação, pois eles acreditam no museu.

2 – Encontramos em seguida o que poderíamos chamar, de modo genérico, « os amigos do museu », essas pessoas generosas, apaixonadas, dinâmicas, que propõem seus serviços a um museu que os agrada. Trabalham ou agem para um museu existente ou para um projeto de museu, por uma exposição, uma oficina sobre o patrimônio etc. Eles fazem isso tanto por gosto profissional quanto pelo sentido de responsabilidade social. Podem grupar-se em associações ou propor seus serviços individualmente, podem também aceitar a participação nos órgãos de gestão do museu (conselhos de administração, board of trustees) ou de coleções (conselhos de aquisição). Em todo caso, eles se põem a serviço dos profissionais que se responsabilizam pelo museu.

Os voluntários trazem ali competências, meios e influência. As competências podem ser de gestão, científicas ou saberes técnicos. Os meios podem ser financeiros (cotizações, garantias de empréstimos, ou financiamentos diretos de trabalhos ou de exposições, materiais (objetos ou documentos, empréstimos de coleções para exposições), em tempo disponível (para trabalhos obscuros mas necessários). A influência decorre das redes de conhecimentos de amigos do museu e do peso que representam na sociedade.

Em troca desses aportes ao museu que podem ser consideráveis, os amigos que são na realidade mecenas, recebem uma notoriedade social e uma satisfação moral e intelectual. Mas os museus podem também lhes trazer outras vantagens : um voluntário que quer ser eficaz deseja receber uma (in)formação específica, no domínio científico ou cultural ao qual pertence o museu, à ação cultural, ao conhecimento de públicos e das diferentes funções do museu. Ele pode também se beneficiar de uma ajuda para a gestão de seu próprio patrimônio (conservação preventiva, constituição de coleções pessoais, conselhos científicos). Pode trazer vantagens dos serviços do museu a seus familiares e amigos ou sua empresa.

Os responsáveis do museu têm interesse em sempre procurar os meios de equilibrar os termos da troca que deve se estabelecer entre o museu, eles mesmos e os voluntários : estes últimos serão tanto mais « devotados » e úteis quanto terão a certeza de tirar um proveito pessoal e coletivo de sua ação a serviço do museu.

3 – Enfim, existe uma categoria relativamente nova de voluntários a serviço do patrimônio e das instituições que, como os museus, se responsabilizam pelo território.Trata-se de pessoas que, no seio de sua comunidade de pertencimento, são promotores e atores do que se poderia chamar de uma “política endógena do patrimônio” . Em suma, desde os anos 60 e 70, um número crescente de museus ou instituições patrimoniais são o fruto de iniciativas comunitárias, freqüentemente conduzidas por uma personalidade carismática ou por um grupo de líderes, mas associando um grande número de membros da comunidade, tanto para a concepção quanto para a decisão, o aporte de meios, a realização e a animação. Mesmo quando a autoridade local (municipalidade ou outra coletividade pública) está geralmente implicada e quando o mais freqüente o reconhecimento dos responsáveis regionais ou nacionais pelo patrimônio e pelos museus é solicitado, a iniciativa, a decisão e a gestão pertencem no todo ou em parte a voluntários saídos do território. Não se trata nem de “públicos” nem de “amigos”, mas de cidadãos que fazem seu museu.

Naturalmente, todo projeto relativamente importante e que quer se tornar profissional deve se dotar de uma equipe de museólogos, museógrafos, técnicos e animadores qualificados, mas essas pessoas estão a serviço de um projeto comunitário que não foi iniciado por eles, o que inverte completamente a relação interpessoal.

Em termos de trocas, esses voluntários que são essencialmente militantes do patrimônio se consideram participantes de um processo mais global de desenvolvimento de seu território, trazendo-lhe um novo instrumento de conhecimento ,de valorização, de proteção de um patrimônio comum, com uma finalidade de transmissão, de transformação, de acolhida/ recepção. È preciso formá-los no que alguns na América chamam de museologia popular (Québec) ou comunitária (México). É também o que forma o essencial da « nova museologia » que agora se espalha por todos os continentes.

Tudo o que acabamos de ver repousa sobre uma constatação extremamente importante : no ambiente territorial e humano do museu e, mais geralmente, do patrimônio, existem competências e energias que podem e, na minha opinião devem, ser inventariadas, mobilizadas e colocadas em ação para o museu.

- Há competências profissionais : que se trata de sábios e eruditos, técnicos, gestores, professores ou animadores, especialistas do turismo ou do comércio, existe habitualmente na população quantidades de expertise utilizáveis, com a condição de identificá-las e adaptá-las às necessidades do museu. Cada visitante, cada « amigo » é potencialmente um conselheiro, um participante, um animador do museu.

- menos (re)conhecido é o conceito de “competência de uso”. Esta é freqüentemente utilizada pelos etnógrafos e pelos sociólogos em seus estudos e pesquisas. Ela não o é sempre como seria preciso no museu nem pelos agentes de desenvolvimento e pelos responsáveis políticos. Trata-se, entenda-se bem, da “ expertise” (experiência, saber qualificado ) sobre o passado ligada à memória individual dos habitantes e também de conhecimentos herdados ou vividos em matéria de patrimônio imaterial para os museus históricos, industriais, etnográficos. Mas são mais práticas saídas da vida cotidiana, no território, no seio da comunidade, da família, etc. : a utilização do espaço, as linguagens dos diferentes grupos sociais, os ritmos sociais, profissionais, escolares, as preocupações mais urgentes da comunidade. Essa competência de uso pode se tornar o capital social do museu e de seus profissionais, desde que se lhe reconheçam o valor e a utilidade, tanto para a constituição, estudo e manutenção das coleções quanto para o sucesso das manifestações e recepção do público. Existem métodos que exigem da parte dos profissionais uma imersão real e permanente no tecido social do território e uma atenção aos testemunhos, provocados ou não, que podem lhes ser dados pelos mais modestos dos habitantes.

- quanto às energias, sabemos todos que existem em cada comunidade, desde que sejamos capazes de fazer compreender o valor e o potencial de um projeto como o de um museu. Aí também, é preciso proceder com método, no respeito à cultura viva das populações e concordando com elas sobre a consideração que merecem.

O museu, como instituição cultural, dedicada ao patrimônio comum, não pode existir verdadeira e culturalmente « fora do solo », como se diz de certas culturas alimentares que crescem em estruturas inteiramente artificiais com os adubos igualmente artificiais. Tal museu seria um simples lugar comercial de consumo e de lazer, ou uma instituição de ciência pura. Para continuar cultural, ele deve estar enraizado num terreno humano e se nutrir da cultura viva da comunidade envolvente.

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