terça-feira, 14 de setembro de 2010

“+ Direito à Memória” ( Mário Chagas)

No mundo contemporâneo vive-se a experiência de uma “vontade de memória e de patrimônio” generalizadas e de uma “vontade de museu” que gradualmente se amplia, ainda que mantenha as especificidades e particularidades de cada experiência concreta. Essas vontades (ou desejos) de memória e de patrimônio não são uma exclusividade do mundo contemporâneo; em diferentes grupos sociais e em diferentes épocas podemos percebê-las e identificá-las.

De algum modo, a vontade de memória se materializa, entre outras possibilidades, como vontade de patrimônio e vontade de museu. A vontade de museu no Brasil, por exemplo, mesmo tendo raízes lançadas no século XIX, desenvolveu-se de modo notável no século XX, iniciado com 10 museus e finalizado com mais de 2 mil museus. Hoje existem no Brasil em torno de 2.700 museus, sendo que o grande aumento numérico ocorreu a partir da Segunda Guerra Mundial, ou, mais precisamente, a partir da segunda metade do século XX.

Ainda que as vontades de memória, de patrimônio e de museu não sejam exclusividades da contemporaneidade, na atualidade elas ganham uma dimensão especial, em virtude de seu vínculo com o campo da comunicação e da política. Memória, patrimônio e museu acionam possibilidades comunicativas e estéticas, e também possibilidades políticas. De outro modo: projetos poéticos e políticos distintos e muitas vezes conflitantes são acionados por diferentes vontades de memória, de patrimônio e de museu. Por esse caminho, pode-se compreender o quanto há de tensão e de disputa no exercício do direito à memória, ao patrimônio e ao museu.

A vontade de memória não se materializa automaticamente como um direito à memória. Não é dado, à partida, que a vontade de patrimônio se expresse como um direito ao patrimônio, nem que a vontade de museu se expresse como um direito ao museu. O direito à memória, o direito ao patrimônio e o direito ao museu precisam ser conquistados, mantidos e exercidos como direitos de cidadania, direitos que precisam ser democratizados.

Nesse sentido, pode-se compreender que a demanda por “+ Direito à Memória” apresentada na I Conferência Nacional de Cultura implica o reconhecimento de que os museus — lugares de lembrança e de esquecimento — constituem direito de todos os cidadãos, e que não basta garantir o acesso às ilhas de memória (e de esquecimento) já existentes e constituídas por grupos dominantes; é preciso democratizar e garantir o direito aos meios de produção da memória, aos processos de transformação, criação e salvaguarda dos suportes de memória.

Para lidar com a memória, no entanto, é preciso abandonar a perspectiva ingênua. A memória é inseparável do esquecimento, ela não é um bem em si mesmo, não expressa a verdade, não constitui um saber científico e tanto pode servir para aprisionar e tiranizar, quanto para transformar e libertar as energias da vida social, política e cultural. Assim, é fundamental desnaturalizar a relação com a memória e perguntar: a serviço de quem está essa idéia? A memória está a serviço de quem?

É possível trabalhar com a memória visando apenas a manutenção e a conservação de núcleos, ilhas e grupos de dominação econômica e política; mas é igualmente possível acionar o poder libertador da memória e criar novos planos de consistência, novas perspectivas, novos pontos de fuga criativa, novas máquinas de guerra colocadas a favor do “empoderamento” social daqueles que historicamente foram subalternizados e expropriados do direito de construir e narrar suas próprias histórias, suas memórias, seus patrimônios e seus museus.

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